Banco responde por dano a correntista que teve dados vazados, decide juiz

As instituições financeiras respondem objetivamente pelos danos causados por fraudes e delitos praticados por terceiros que se aproveitem de problema técnico no sistema bancário.

Juiz concluiu que ‘vício do serviço
bancário’ possibilitou golpe contra cliente
Reprodução

Com esse entendimento, o juiz Marcos Alexandre Bronzatto Pagan, da 2ª Vara do Juizado Especial Cível de São José dos Campos (SP), condenou um banco a restituir R$ 32,8 mil a uma correntista que foi vítima de um golpe após ter seus dados vazados pela instituição financeira.

De acordo com os autos, a consumidora relatou que transferiu dinheiro, via Pix, a um golpista que se valeu de dados sigilosos vazados de seu cadastro bancário para induzi-la a cair na fraude. Após as operações, a cliente reclamou com o banco, que se negou a devolver o dinheiro.

A mulher, então, levou o caso à Justiça, alegando responsabilidade da instituição financeira. Ao analisar o pedido, o juiz Marcos Pagan considerou coerente a versão apresentada pela correntista. Para ele, “o vazamento de dados sensíveis da autora é patente quando analisada a cronologia dos fatos — tal qual didaticamente descrita na petição inicial”.

O juiz observou que a consumidora, além dos comprovantes das operações, apresentou também os e-mails que trocou com a gerente, o extrato da conta e o registro dos contatos telefônicos. Além disso, destacou que a mulher é cliente antiga do banco, sem nenhum antecedente do tipo — “fatores que lhe atestam a boa-fé e que reforçam a credibilidade dos relatos”.

“Diante disso tudo, reconhece-se a ocorrência de vício do serviço bancário (art. 20, caput, do CDC) ante o indevido vazamento de informações sigilosas por flagrante vulnerabilidade operacional — o que permitiu a utilização de dados sensíveis da autora por terceiros, em ardil conduta”, escreveu Pagan.

Dessa forma, prosseguiu ele, o regime jurídico aplicado a tais questões é o Código de Defesa do Consumidor. “As instituições financeiras resistiram, mas o Supremo Tribunal Federal reafirmou (ADI 2.591) o que já estava previsto expressamente na lei (art. 3º, § 2º, do CDC)”, anotou o juiz.

Pagan citou ainda jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) segundo a qual “nas hipóteses de fraude mediante pagamento de boleto falso com pagamento a destinatário distinto do legítimo beneficiário, o ressarcimento só é cabível mediante prova do direcionamento do lesado ao fraudador por preposto ou pelos canais de atendimento bancários, ou seja, quando gerado por fortuito interno” — situação que a consumidora conseguiu demonstrar nos autos.

Clique aqui para ler a decisão
Processo 1017193-60.2022.8.26.0577

Matéria selecionada por Paula Thalia Barbosa Souza Santos – Estagiária de Direito.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2023-set-10/banco-responde-dano-correntista-teve-dados-vazados

Caso 123milhas: o que consumidores e operadores do Direito precisam saber

A sociedade empresária 123milhas anunciou, no dia 18/8/2023, que não emitirá passagens já adquiridas da linha “Promo”, com embarques previstos de setembro a dezembro de 2023, e que eventual devolução de valores será realizada por meio da disponibilização de voucher (disponível aqui. Acesso em 20/8/2023).

Os meios de comunicação informam que os ministérios da Justiça e do Turismo já trabalham em conjunto para avaliar a instauração de investigação e pedido de esclarecimentos pela 123milhas, de modo que sejam esclarecidos os motivos dos cancelamentos, a identificação de todos os consumidores atingidos pela medida e também como será feita a reparação dos danos sofridos pelos consumidores (disponível aqui).

Como visto acima, a 123milhas inseriu em seu site um link para que o consumidor possa solicitar o voucher para a obtenção de crédito na própria plataforma da empresa. Ocorre que o consumidor não é obrigado a aceitar referido voucher, podendo exigir a devolução da quantia paga pelo pacote em dinheiro ou sob a forma de estorno para seu cartão de crédito, conforme o meio de pagamento utilizado para a contratação do serviço.

Em primeiro lugar, cumpre dirimir uma dúvida frequente entre consumidores e profissionais da advocacia no tocante a eventuais consumidores que já aceitaram a restituição de valores em forma de voucher. Será que, mesmo tendo aceitado essa espécie de estorno, o consumidor pode se arrepender, e manifestar sua vontade no sentido de que a devolução de valores ocorra em dinheiro ou pela restituição de crédito ao seu cartão?

Para responder a essa indagação, deve-se considerar que o Código de Defesa do Consumidor, conforme enuncia já em seu artigo 1º, “estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5°, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias“. Para a melhor doutrina consumerista [1], o conteúdo do referido dispositivo do código traduz a ideia de que as normas do CDC são inderrogáveis pela vontade das partes, ou seja, ainda que o consumidor aceite a restituição por meio de voucher, se essa modalidade for imposta pelo fornecedor — e não uma opção para o consumidor —, não terá validade jurídica, conforme será visto adiante.

Superado o esclarecimento acima, adiante o Código de Defesa do Consumidor traz ao menos mais três importantes dispositivos legais que impedem que a devolução de valores seja imposta ao consumidor por meio de voucher.

Inicialmente, veja-se o que dispõem os incisos II e XIII do artigo 51 do CDC:

“Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

(…)

II – subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga, nos casos previstos neste código;

(…)

XIII – autorizem o fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo ou a qualidade do contrato, após sua celebração.”

Não há dúvidas de que, ao impor a devolução do valor pago pelo pacote de viagem através de voucher, a 123milhas está subtraindo do consumidor a opção de reembolso em desacordo com os casos previstos no CDC. Isso porque o inciso III do artigo 35 do código é claro ao prever expressamente que, se o fornecedor descumprir a oferta, apresentação ou publicidade, é facultado ao consumidor exigir a devolução da quantia paga, monetariamente atualizada, e sem prejuízo de eventuais perdas e danos. Ou seja, a opção é do consumidor. Veja-se:

“Art. 35. Se o fornecedor de produtos ou serviços recusar cumprimento à oferta, apresentação ou publicidade, o consumidor poderá, alternativamente e à sua livre escolha:

(…)

III – rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente antecipada, monetariamente atualizada, e a perdas e danos.”

Quanto à cumulação de perdas e danos com a restituição da quantia paga, tal é possível, principalmente, em razão da perda do tempo imposta ao consumidor pela não realização da viagem planejada. Nesse contexto, o consumidor pode ajuizar ação judicial para a reparação de dano moral e pela perda do seu tempo de vida — fato que caracteriza ofensa à sua autodeterminação, atingindo sua liberdade (direito fundamental expresso no caput do artigo 5º da Constituição Federal), prejudicando o tempo que reservou para seu descanso e lazer, que também são direitos fundamentais expressos na Constituição (artigo 6º, caput, da CF/88).

A respeito do que foi dito acima, há precedentes [2] em nossos tribunais em que se garante a tutela do tempo de vida do consumidor em casos envolvendo o cancelamento de viagem pelo fornecedor, aplicando-se a tais hipóteses a Teoria do Desvio Produtivo [3], criada por Marcos Dessaune, bem como a tese do Menosprezo Planejado, de Laís Bergstein [4].

Seguindo, outro argumento apto a afastar a imposição de restituição de valores ao consumidor através de voucher encontra fundamento no princípio da confiança, que se relaciona ao princípio da boa-fé objetiva, expressamente previsto no inciso III do artigo 4º do CDC.

Pelo princípio da confiança, busca-se proteger as legítimas expectativas do consumidor em relação ao produto adquirido ou ao serviço contratado junto ao fornecedor. Significa, resumidamente, que o consumidor confia que a relação com o fornecedor não lhe trará problemas, ou seja, cria a legítima expectativa para o consumidor de que tudo dará certo.

Voltando-se ao caso em comento, a partir do momento em que a 123milhas cancela, de forma unilateral e deliberada, a viagem contratada pelo consumidor, informando, de forma absolutamente genérica, que tal fato tem como causa “questões de mercado”, sem oferecer maiores detalhes, o consumidor perde imediatamente a confiança no fornecedor, e provavelmente não desejará dar continuidade à relação jurídica.

Quem, já tendo sido lesado por um fornecedor, arriscará continuar uma relação que já deu errada?! A pergunta, por óbvio, é retórica.

A encerrar este breve artigo, há reflexão interessante direcionada, particularmente, aos operadores do direito, relacionada ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica do fornecedor, em casos semelhantes ao que envolve a 123milhas. O artigo 28 do CDC e seu § 5º enunciam:

“Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

(…)

§ 5°. Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.”

Nesse contexto, destaca-se que há precedentes [5] em nossos tribunais admitindo a desconsideração da personalidade jurídica do fornecedor em sede de tutela de urgência (artigo 300 e ss. do CPC), em que houve, já no início do processo, a inclusão dos sócios da sociedade empresária no polo passivo da lide, o deferimento de realização de bloqueio de contas bancárias via Sisbajud, na modalidade teimosinha, de modo a se buscar ativos em nome daqueles, e também o bloqueio de veículos pelo sistema Renajud, objetivando-se a busca de veículos de propriedade dos sócios.

Em conclusão, reafirme-se: a 123milhas não pode impor ao consumidor a devolução da quantia paga pelo pacote de viagem através de voucher. A disponibilização desse tipo de crédito deve ser apenas uma opção oferecida ao consumidor, pois, como visto, o Código de Defesa do Consumidor garante a este que a restituição da quantia que pagou pela viagem seja realizada em dinheiro, caso o pagamento tenha sido feito através de boleto bancário, Pix ou outra modalidade de transferência bancária, ou por estorno em cartão de crédito, caso tenha sido essa a modalidade de pagamento utilizada.


[1] “As normas de ordem pública estabelecem valores básicos e fundamentais de nossa ordem jurídica, são normas de direito privado, mas de forte interesse público, daí serem indisponíveis e inafastáveis através de contratos. O Código de Defesa do Consumidor é claro, em seu art. 1.º, ao dispor que suas normas se dirigem à proteção prioritária de um grupo social, os consumidores, e que se constituem em normas de ordem pública, inafastáveis, portanto, pela vontade individual. São normas de interesse social, pois as leis de ordem pública são aquelas que interessam mais diretamente à sociedade que aos particulares, daí poderem encontrar aplicação ex officio, em especial como a sanção do CDC é a da nulidade taxativa absoluta (art. 128, in fine, do CPC c/c o parágrafo único do art. 168 e art. 166, VII, do CC/2002).” (BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 7ª edição. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2016, p. 73).

[2] Por todos, confira-se o seguinte julgado: CANCELAMENTO DE VIAGEM – Pacote de viagem cancelado – falha na prestação de serviço devido a quantia desembolsada não ter sido devidamente devolvida – Aplicação da Lei 11.034/2020 – Responsabilidade objetiva e solidária – Dano moral in re ipsa configurado, pela via crucis imposta ao consumidor – Aplicação da Teoria do Desvio produtivo do consumidor e Teoria do Desestímulo – Recurso ao qual se dá PARCIAL PROVIMENTO, apenas para reduzir o montante fixado a título de danos morais, em atenção aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade (TJ-SP – RI: 10023353520228260541 SP 1002335-35.2022.8.26.0541, relator: José Pedro Geraldo Nóbrega Curitiba, data de julgamento: 24/10/2022, 1ª Turma Cível e Criminal, data de publicação: 24/10/2022)

[3] “Desvio Produtivo do Consumidor é o fenômeno socioeconômico que se caracteriza quando o fornecedor, ao atender mal, criar um problema de consumo potencial ou efetivamente danoso e se esquivar da responsabilidade de saná-lo, induz o consumidor carente e vulnerável a despender seu tempo vital, existencial ou produtivo, a adiar ou suprimir algumas de suas atividades geralmente existenciais e a desviar suas competências dessas atividades, seja para satisfazer certa carência, seja para evitar um prejuízo, seja para reparar algum dano, conforme o caso”. (DESSAUNE, Marcos. Teoria Aprofundada do Desvio Produtivo do Consumidor: O Prejuízo do Tempo Desperdiçado e da Vida Alterada. 2ª ed. rev. e ampl., Vitória: Edição Especial do Autor, 2017, p. 357)

[4] “Em primeiro lugar para se aferir o dever de compensação pelo tempo perdido pelo consumidor, questiona-se, no caso concreto, se o consumidor ou a sua demanda foram menosprezados pelo fornecedor? O ato ou efeito de menosprezar consiste na falta de estima, apreço ou consideração; corresponde ao desdém no tratamento dado a alguém, à desconsideração, à desvalorização, à desqualificação, ao menoscabo. O menosprezo ao consumidor é observado nos casos de fornecedores que ignoram os pedidos e as reclamações do consumidor ou não lhe prestam informações adequadas, claras e tempestivas. O menosprezo é o desrespeito, a desconsideração das legítimas expectativas geradas no consumidor. O menosprezo reside na desvalorização do tempo e dos esforços travados pelo consumidor em relação ao fornecedor dentro de uma relação jurídica de consumo, em qualquer de suas fases, seja para resolução de um vício do produto ou do serviço, seja para compreender as instruções técnicas inadequadamente apresentadas, por exemplo (…). Ao implementar sistemas morosos, pouco eficientes, deixando de investir adequadamente na cadeia produtiva o fornecedor transfere ao consumidor todo o ônus decorrente de sua inércia, os riscos inerentes à sua própria atividade. E tal conduta desidiosa pode gerar danos, inclusive o dano pelo tempo perdido, também chamado de ‘dano temporal’ ou ‘desvio produtivo’, que deverão ser reparados. O menosprezo planejado, a tentativa oculta de transferência de riscos ao consumidor, que contraria a boa-fé objetiva, ofende os princípios que regem a política nacional das relações de consumo e constitui prática abusiva”. (BERGSTEIN, Laís. A consolidação do dano pela perda do tempo do consumidor no brasil e o duplo critério para sua compensação: o menosprezo planejado. In Dano Temporal: O Tempo como Valor Jurídico. Gustavo Borges, Maurilio Casas Maia (org.). 2ª ed. rev. e ampl., São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019, p. 94-95)

[5] EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL C/C DEVOLUÇÃO DOS VALORES PAGOS, COBRANÇA DE RENDIMENTOS E DANOS MORAIS COM PEDIDO DE TUTELA DE URGÊNCIA – TUTELA DE URGÊNCIA – ANTECIPADA – REQUISITOS DO ART. 300 DO CPC/2015 – DEMONSTRAÇÃO – DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA – TEORIA MENOR – OBSTÁCULO AO RESSARCIMENTO DOS PREJUÍZOS CAUSADOS AO CONSUMIDOR – DEFERIMENTO. Para a concessão da tutela de urgência, cumpre à parte que a requerer demonstrar, de forma inequívoca, a probabilidade do direito pretendido e o perigo de dano. Presentes esses requisitos, impõe-se o deferimento da tutela de urgência pleiteada. Em se tratando de relação de consumo, aplica-se a teoria menor, por meio do qual o instituto da desconsideração da personalidade jurídica é devido quando este se configurar como obstáculo ao ressarcimento dos prejuízos sofridos pelo consumidor, nos termos do art. 28, § 5º do Código de Defesa do Consumidor. (TJ-MG – AI: 11378036820238130000, relator: des.(a) Arnaldo Maciel, data de julgamento: 11/7/2023, 18ª Câmara Cível, data de publicação: 11/7/2023)

Matéria selecionada por Paula Thalia Barbosa Souza Santos – Estagiária de Direito.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2023-ago-23/garantias-consumo-123milhas-consumidores-saber